Skate nas mãos de skatistas
Por Guto Jimenez
Arte: Cesinha Chaves
Na sexta-feira da semana passada, a World Skate divulgou um comunicado no qual informou que a entidade não iria mais chancelar os Mundiais de Park e Street, previstos pra acontecerem no Rio nas duas primeiras semanas de outubro. A nota dizia que lamentava o ocorrido e alegou que o principal motivo do cancelamento de seu envolvimento com o evento teria sido uma suposta “incapacidade financeira para cumprir os termos e condições do Memorando de Entendimento firmado entre a World Skate e os organizadores”. Chegaram a ir além, declarando que tinham dúvidas quanto ao cumprimento dos compromissos quanto aos valores da premiação, insinuando nas entrelinhas que os competidores poderiam levar um calote.
(Curiosamente, o comunicado foi distribuído pra veículos de imprensa de todo o mundo, mas nada da informação foi encontrada em nenhuma mídia oficial da entidade, seja no site ou em seus perfis no Facebook, Instagram e Twitter.)
Como não poderia deixar de ser, a resposta veio em velocidade 5G. Tanto a CBSk (entidade máxima do skate em nosso país) quanto a plataforma STU (organizadora dos eventos) não só distribuíram comunicados e notas de posicionamento pra imprensa, como também fizeram publicações em suas redes sociais. As manifestações de ambas podem ser conferidas aqui e aqui — publicadas no mesmo dia, com diferença de poucas horas depois da manifestação da World Skate. O final de semana foi de intensa troca de mensagens no Whatsapp e Telegram, de prints de conversas compartilhados por fontes e deletados em seguida e de uma grande especulação: e agora?! O que vai acontecer a partir de 2ª-feira?
“Fogo no parquinho!”
A semana abriu com uma Carta Aberta escrita por Diego Castelão, presidente da agência Rio de Negócios e responsável direto pela plataforma STU, que teve o efeito de uma skatada na cara da World Skate.Jornalisticamente falando, seria injusto de minha parte publicar trechos que pudessem deturpar o sentido final do material, correndo ainda o risco de causar algum tipo de mal entendido ao retirar frases de seu contexto. Sendo assim, o texto na íntegra está aqui.
A semana terminou com o empresário, skatista e “pai do Pedro”, André Barros, renunciar à sua posição na World Skate Americas, um dos braços da entidade mundial. Entre esses dois dias, pessoas muito influentes da CBSk começaram a postar a hashtag #nomerge em reação a uma futura mudança que eu explico mais abaixo. Fica cada vez mais público e notório o inconformismo de brasileiros perante a World Skate, como está explícito na Carta Aberta: “Acreditamos fortemente que a falta de profissionalismo, representatividade e legitimidade ao skate chegaram no seu limite.”
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Precisamos ser muito sinceros aqui: eu e 90% de skatistas que eu conheço — de várias idades, praticantes de todas as modalidades e moradores em quase todo o mundo — jamais engolimos esse envolvimento do skate com a federação internacional de patinação.Tudo bem, tem sempre aquele precedente histórico dos primeiros skates terem sido feitos a partir de patins serrados ao meio, e o fato inegável que ambos usam rodas de uretano com rolamentos, mas é só isso e nada mais. O fato do carrinho ter que se unir aos caras foi uma conveniência pra que o skate chegasse às Olimpíadas; agora, parece que esse relacionamento está perto do fim. Quer dizer que os caras só chegaram ao protagonismo nos Jogos Olímpicos por causa do skate, e mesmo assim não fazem nem o mínimo necessário, e agora ainda querem impor exigências absurdas?! Então os caras lá são os responsáveis por “organizar, fomentar e difundir a prática” do carrinho em todo o mundo, mas mesmo assim perderam o prazo pra inscrição do paraskate pra edição de 2028, que será realizada justamente em Los Angeles, uma das capitais mundiais da cultura do skate?!
Não gosto muito da expressão “mal necessário”, por acreditar que não existe nenhuma necessidade de prejudicar alguém, algum lugar ou alguma situação. Pois bem, a atitude da World Skate está provando que, sim, infelizmente eles foram mesmo o mal com a qual o skate teve de se aliar unicamente por exigência do COI. Não tem mais como disfarçar o desconforto — que foi criado por eles lá, nunca se esqueça disso. A completa dissociação da entidade mundial das realidades que fazem aquilo que o skate representa foi comprovada, mais uma vez e de maneira inegável. Não havia sido a primeira vez que essa alienação havia se manifestado, mas pode ser que tenha sido a última.
Teve uma experiência bem ilustrativa que passei em evento brasileiro que foi realizado pela World Skate. Eu e Bruno Funil estávamos comandando a locução no primeiro dia que a competição estava aberta ao público, que já lotava as arquibancadas da Arena Carioca e mostrava a sua costumeira animação e empolgação perante as performances dos skatistas. Em um momento qualquer, um integrante da WS nos abordou e veio nos pedir pra fazermos “uma locução mais sóbria, pois estava excitando demais a plateia”. Nós conseguimos conter a surpresa e a vontade de rir, e respondemos com educação: isso é skate e aqui é o Rio de Janeiro. O coordenador da Street League nos deu total razão e ainda revelou que “eles sempre vêm com essa mesma história…”
A pergunta que não quer calar é: o que pretende a World Skate com isso?
Existe um burburinho muito intenso nos bastidores, dando conta de uma possível determinação futura do COI. Segundo fontes, haverá uma exigência da união das entidades mundiais relacionadas ao mesmo grupo de esportes, sendo que a entidade mais antiga seria denominada como a única responsável pelas modalidades. Traduzindo: a World Skate seria a única reconhecida pra representar o skate nas Olimpíadas. Talvez essa perspectiva tenha animado os dirigentes da patinação, que pela primeira vez na história se viram sob os holofotes como uma das principais atrações de uma edição das Olimpíadas. Devem estar se sentindo com tudo…
Só tem um detalhe: o skate tem diversidade, praticantes, cenários e cultura suficientes pra viver sem as Olimpíadas. Não vamos nos esquecer que, lá atrás, foi o próprio COI que mexeu os seus pauzinhos pra que o carrinho participasse dos Jogos, não o contrário. É evidente que a mudança do nível da cena mundial se deu após o início do ciclo olímpico, como o aumento de popularidade, o incremento de praticantes e o tão desejado respeito por parte da sociedade. Esse é um passo que não dá pra voltar atrás, a não ser que os dirigentes da entidade assim o decidam, mas a gente sabe que isso não vai acontecer tão cedo. Os ótimos índices de audiência que os “novos esportes” trouxeram vieram com lucros impressionantes a todos os envolvidos, então não dá pra achar que “o Comitê pode se aborrecer com tanta confusão e punir o esporte como um todo”. Tudo isso tem influência nas decisões, portanto não tenha tanta ingenuidade pra achar que esse pessoal só pensa no aspecto esportivo.
Entre as decisões futuras que podem ter influência no cenário do skate, está a possível inclusão do downhill como modalidade olímpica. No período entre meados de outubro e o início de novembro, será realizado o World Skate Games na Argentina, com competições de skate velocidade a serem disputadas na província de San Juan. Não é a primeira vez que eles irão organizar um campeonato de skate velocidade, uma vez que a entidade organizou provas nos World Roller Games de Barcelona em 2019. Na época, tiveram a assessoria especializada da IDF, então a organizadora oficial do circuito mundial, cuja parte dos dirigentes esteve na Vista Chinesa alguns meses antes e teve participação direta na maior tragédia do skate de competição em todos os tempos. Pois bem, tente adivinhar quem são as pessoas que foram chamadas pela World Skate pra organizar a prova na Argentina; sim, são os mesmos que tiveram no Rio e fizeram aquela inesquecível desgraça.
Precisa de mais alguma prova da alienação da World Skate com o skate?!
Se essa determinação do COI realmente for colocada em prática, não haverá outro caminho senão ser o de romper com os dirigentes de patinação e formar um única entidade mundial do skate. Não dá mais pra ser aliado — e, pior ainda-, coadjuvante — de um monte de leigos que desconhecem aquilo que deveriam gerenciar e, ainda por cima, estão agindo como se fossem donos da verdade e da razão. Se ainda fizessem o que se espera de uma entidade mundial, acredito que skatistas até poderiam aceitar com resignação, já que a competência geralmente cala a maior parte das críticas. Mas ao agirem de forma amadora, como se fossem uma associação local recém-formada e não uma entidade global com décadas de existência, e ainda exalarem prepotência, os dirigentes da World Skate estão dando um tiro de escopeta nos próprios pés. Sou da seguinte opinião: se o COI criar um problema, que esteja preparado pras possíveis consequências, que podem incluir o boicote dos principais skatistas aos Jogos.
Skate precisa de gente preparada, que entenda as várias nuances que existem em suas modalidades e que saiba gerenciar todas elas, respeitando as suas semelhanças e diferenças. Precisa também de se sentir representado, não necessariamente apenas através de skatistas, mas por gente que tenha respeito e amor aos carrinhos e longboards. Precisa ainda, e principalmente, de competência de pessoas que estejam dispostas a interagir com as comunidades existentes em todo o mundo, sem distinção das modalidades que praticam.
Skate nas mãos de skatistas.
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Guto como sempre visão ampla e apurada dos fatos! O Skate Brasileiro agradece. Excelente texto.